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quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Carícias e gemidos


Por Pedro Rocha
 
“Ó essa cuíca!”, grita vez por outra Mônica Andrade, 46, lá de dentro. “Ai meus ouvidos!”. A decoradora arrelia-se com o gemido agudo que vem do quintal. O marido, Geraldo Rodrigues Filho, o Júnior da Cuíca, todos os dias pega o instrumento e põe-se a viçar na vareta de bambu ali por dentro do corpo metálico. A danada se contorce toda em gaiatices com os agrados dele. “De vez em quando eu dou uns carão”, conta Mônica. Ela reclama, mas acha bom. Quando o conheceu, ele já rodava por tudo que era samba da cidade. Não mudou nada de lá pra cá – pelo contrário, o coro aumentou.
No quintal do casal, na rua João Cordeiro, 556, há dois anos reuni-se o auspicioso Clube da Cuíca, criado pelo clamor dos homens e mulheres amantes do instrumento e organizado pelo próprio Júnior. O lugar colorido, decorado com espelhos e outros caprichos da dona da casa, é velho conhecido do samba. Ali nasceu há 29 anos o bloco carnavalesco Que Merda é Essa?, que desfilará mais uma vez no sábado, a partir das 20 horas, dedicado aos frevos, marchinhas e sambas das antigas.

“Aqui tem até piscina. Clube não tem que ter piscina, né?”, brinca Júnior.

Às terça e quintas, e nas tardes de sábado, os sócios se encontram no dito endereço para conversar, tomar uma cervejinha e tocar cuíca, evidentemente. Hoje já são 46 inscritos no Cadastro de Cuiqueiros do Ceará, a grande maioria espalhados pelas alas dedicadas exclusivamente ao instrumento em blocos de Pré-Carnaval. Na bateria do Baqueta, por exemplo, desfilaram no último sábado 18 cuícas, incluindo a do Júnior. A ala da Unidos da Cachorra saiu com meia dúzia, entre elas, a de outro membro do clube, o historiador Renato Freire, 26.

Caçula do grupo, Renato chega ao quintal com o instrumento a tira-colo, que comprou há dois anos no Rio de Janeiro, quando ainda não sabia o que fazer com o pau e o couro. Não obstante as aulas de piano e violão da adolescência, a percussão demorou um pouco mais para entrar na sua vida, o que aconteceu depois de assistir a um cortejo da Cachorra. O caminho da caixa de guerra para a cuíca fez em um ano. Hoje é um dos instrutores da ala do instrumento na bateria.

“Eu já achava a cuíca impressionante”, confessa Renato.

Novos artistas
A sabedoria popular comenta que a cuíca tem a mania de conquistar o sambista – ou a sambista, já que o número de cuiqueiras, dizem, cresceu absurdamente no último par de anos – aos poucos, de forma lenta e irrevogável. O sujeito começa pelo pandeiro ou tamborim, ensaia uns chamegos com o surdo, o rebolo, quiçá o repique de mão (existem relatos de homens perdidamente apaixonados por um reco-reco), mas por fim descansa nos braços da sua querida. A relação normalmente influi, para o bem ou para o mal, nas relações conjugais.

Renato é um caso à parte. O jovem afirma sem titubear: “Não tenho problema com mulher”. Já Phasconite Franklin, 37, não pode dizer o mesmo, apesar de o fazer sorrindo. O percussionista, que começou menino batucando em um tamborim, faz dois carnavais que inventou de aprender a tocar cuíca e convocou os ciúmes da esposa. “A mulher tem raiva, porque acha que eu gosto mais da cuíca do que dela”, conta. O caso promete repercussão: o filhos Davi, de apenas 6 anos, ganhou uma mini-cuíca e não quer saber de outra coisa na vida.

“É uma onda, porque minha mulher é evangélica e tenta evitar”, revela Phascoal, achando graça. “Eu também tento, vou pra igreja, mas quando chega esse período carnavalesco complica”. Não bastasse, a esposa quer levá-lo para um retiro espiritual este ano, o que deve dividir o Carnaval do dono de oficina mecânica ao meio – a cisão milenar entre o sagrado e o profano. “É osso”, conclui.

O exemplo vem de casa
Na conversa sobre o Clube da Cuíca, Mônica se derrete em elogios ao marido e o inclui entre os três melhores cuiqueiros do Brasil, ao lado do paulista Oswaldinho da Cuíca e de Arsênio da Cuíca, este último mestre da ala de cuícas da Portela, que em abril do ano passado participou do 1º Encontro do Clube da Cuíca de Fortaleza. A esposa ressalta também os dotes do marino no manejo com o instrumento.

- O Júnior faz a manutenção dessas cuícas todinhas. Ele pela o couro, bota o couro no caldo, tira os pelos, bota o cambito... Muito difícil de botar esse pau ai no meio, eu quero é que você veja. Pra acertar esse meio... Eu já vi muita coisa feia, pau bem aqui de lado. Ele bota bem direitinho – explica Mônica.

- Olha ai, o negócio é esculhambado... – ri Júnior.

- Ele bota beeeem direitinho!

Quem quiser, pois, consertar o seu instrumento ou aprender a tocá-lo, pode procurar o Júnior para se associar ao Clube da Cuíca. Durante o Carnaval, os encontros sofrem as intermitências naturais do período, mas, a partir de março, quem passar às terça, quintas e sábados pela rua João Cordeiro, 556, poderá ouvir os gemidos de satisfação.



 http://www.2011.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2012/01/18/noticiavidaeartejornal,2375388/caricias-e-gemidos.shtml

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