Crônica publicada na Revista Raiz em 16 de Junho de 2008 |
Airton Gontow e Jamelão |
Por Airton Gontow
Confesso que apesar dos anos de experiência como jornalista cheguei apreensivo ao encontro com Jamelão, que iniciaria uma bela trajetória no Bar Brahma. Afinal, poucos artistas carregavam tamanha fama de braveza e mal-humor. “Nunca o chame de puxador”, advertiram alguns; “Não toque no nome do Cartola”, diziam outros.
Com receio apresentei-me àquele senhor elegante, de chapéu e paletó, com elásticos nos dedos. Pedi para entrevistá-lo e convidei-o para sentar: “Eu não sento. Eu me acomodo. Mas se você gosta de sentar, respeito as suas preferências”, disse Jamelão, para logo abrir um inesquecível e discreto sorriso com os olhos.
Em pouco tempo, enquanto eu buscava dados para meu primeiro release, já que o Bar Brahma era um dos clientes da minha assessoria de imprensa, Jamelão já havia disparado vários outros trocadilhos e brincadeiras, como quando perguntei o que desejava tomar: “Eu não tomo. Eu bebo...”
Conto esta história para desmentir a injustificada fama que Jamelão carregou de mal-humorado por toda a sua vida. Era, sim, um homem de personalidade forte, frases incisivas e momentos de incrível falta de paciência. Mas para quem o conheceu de perto, Jamelão deixou a imagem de um homem bondoso, alegre, divertido e, claro, notável cantor.
Como o espaço é curto, deixo de lado a conversa e conto agora algumas das histórias que vivenciei ao lado Jamelão, de quem terei para sempre o orgulho de ter sido amigo.
No Sujinho, de madrugada
Estávamos no Sujinho, tradicional reduto da noite paulistana. Era a noite do jogo do Inter de Porto Alegre contra o São Paulo, no Morumbi, pela Taça Libertadores. Percebemos alguns colorados, discretos e disfarçados no meio daquele bar lotado de são-paulinos cabisbaixos pela derrota em casa. Lá pelas 3h um grupo se aproximou da mesa: "Jamelão, somos gaúchos e teus fãs. Tu podes dar um autógrafo para a gente?" Jamelão olhou fixo e disparou: "só se vocês acertarem qual é a minha musica predileta!". E deu a dica: “é do Lupicínio”.
"Nervos de Aço"", exclamou um. "Vingança", disse outro. "Esses moços, pobres moços...", arriscou um terceiro. Ele finalizou a conversa: "Você erraram, não tem autógrafo". Deu um leve pontapé em mim por baixo da mesa e começou a cantarolar: “até a pé nós iremos, para o que der e vier, mas o certo é que nós estaremos, com o Grêmio onde o Grêmio estiver". Os colorados olharam atônitos. Ele abriu um largo sorriso e disse: "sou gremista em Porto Alegre, santista em São Paulo e, principalmente, vascaíno no Rio, mas vocês estão de parabéns pela bela vitória. Para quem dou os autógrafos?" Todos rimos saborosamente...
Jamelão explica por que não dá a mão
De cima do palco, Jamelão não percebeu de imediato o braço estendido. O homem pegou na barra da calça do famoso sambista carioca e puxou-a, com relativa força. Jamelão olhou, olhou, mas não teve a provável reação zangada. Inclinou o corpo e pegou o bilhete. Não satisfeito, o homem burlou a segurança, subiu no palco e logo se aproximou de Jamelão, novamente com o braço estendido.
Temi pelo pior e imaginei que Jamelão empurraria ou no mínimo passaria um pito histórico no intruso. Jamelão olhou, olhou e, finalmente, estendeu a mão para o aperto pedido pelo homem.
O sujeito desceu do palco e Jamelão prosseguiu cantando: “maestro, músicos, cantores, gente de todas as cores, faça um favor pra mim...” Ao final da canção, interrompeu os aplausos e disse: “Há pouco quase não dei a mão para aquele homem que subiu aqui no palco. Mas logo imaginei que no dia seguinte os jornais diriam: ‘o Jamelão é antipático’, ‘o Jamelão é isso, o Jamelão é aquilo’. Além disso essa música é tão bonita que não valia a pena interrompê-la. Por isso retribuí o cumprimento, mas agora eu vou contar por que não gosto de dar a mão para ninguém que não conheço: em 1963 eu ia para o morro da Mangueira quando começou a chover. Busquei abrig o em um ponto de ônibus. Havia um homem de costas, fazendo xixi em um barranco. Quando terminou, virou-se, me viu e gritou: ‘Jamelaaaaão!!’ E veio em minha direção, com a mão aberta.Então eu falei: ‘sai pra lá! Você estava pegando no seu e agora que me dar a mão!’ Depois disso pensei: sou um homem público. Aquele tipo eu vi onde estava com a mão antes. Mas dos outros não vejo. De repente, aquele sujeito que está agora sentado lá na frente tomou umas cervejas a mais, foi ao banheiro, não lavou as mãos, saiu, veio até o palco, subiu e tive de pegar no dele por tabela!, disse Jamelão, para ser ovacionado pela platéia.
Cena de grito em um bar da Avenida São João
Na saída do Bar Brahma, situado na esquina imortalizada por Caetano Veloso em “Sampa”, uma garota loira e bonita vem correndo em nossa direção. São 2h e ela gritava histericamente. Pára de berrar, pega na mão de Jamelão e lasca-lhe um beijo. "Sai daqui sua
louca. Sai! Fora! Sai daqui!", vocifera o cantor. Ela fica abalada. As poucas pessoas que restavam na casa olham assustadas. Ele se justifica: "Adoro mulher. Olho para as mais novinhas e, até, para asmais velhinhas. Mas não é porque sou preto e velho que vou deixar queuma mulher me trate como se eu fosse um pai de santo. Beijo na mão eu não aceito!"
Jamelão, o antipático
Jamelão recebia para ficar no palco do Brahma cerca de uma hora. Mas gostava de ficar mais. Bem mais. Às vezes o show chegava a 2h30, entre sambas históricos e canções românticas. Até que anunciava a última música, “a mais importante para mim em toda essa noite”. O público olhava surpreso, porque Jamelão já havia desfilado os sambas antológicos da Mangueira e músicas como “Nervos de Aço”, “Esses Moços” e “Vingança”, de Lupicínio; “Matriz e Filial”, de Lúcio Cardim; e “As Rosas não Falam”, de Cartola (sim, ele cantava Cartola, ao contrário do que muitos jornais disseram e apesar de deixar claro que “não tinha empatia pelo Cartola como pessoa’). Qu e música seria essa? Aí começava a cantar uma composição sua: “O papai já vai embora, o papai vai descansar, o relógio tá marcando (e ele olhava para o pulso): 1h30! Tá na hora de nanar. O papai já vai embora, o papai vai descansar, vou pra casa da Aurora ou então da Dagmar...”
Depois ainda encontrava tempo e disposição para dar autógrafos e tirar fotos com todos os fãs que assim o desejassem.
Naquele dia, porém, todos esquecemos do tempo e quando vimos já passava das 3h e a cozinha do Brahma não tinha mais os pratos tão sonhados pelo sambista. E sanduíche ele não queria!
Seguimos para o Confraria, outro templo da boa música na capital paulista. Ao entrarmos, o bar inteiro saudou: “Jamelão! Jamelão! Jamelão!”. E pediu: “canta! canta! canta!” Formos até o fundo do bar e sentamos. Ou melhor, nos acomodamos. O público continuou: “canta! canta! canta!” Mesmo extenuado, Jamelão, então com 92 anos, foi ao palco e disse: “olha gente, já cantei durante 2h30 no Brahma. Então vou mostrar só duas músicas, em homenagem a vocês” E soltou seu vozeirão para a alegria geral da nação.
Quando voltou à mesa, iniciou-se uma nova peregrinação de fãs à procura de um autógrafo. Foram uns 30, em meia hora. Quando o prato chegou, lá pelas 4h e Jamelão começou a comer, um homem se aproximou com uma câmera nas mãos e disse: “vamos tirar uma foto?” Sério, Jamelão disse: “Agora não dá meu filho, estou jantando”. Ao que o homem respondeu: “Bem que disseram que você é um antipático grosseiro!” Jamelão olhou-me e, resignado, continuou a comer.
Garçom racista
Na Lellis Trattoria Jamelão olha transtornado para o garçom e grita: “o senhor é um racista! É um racista! Vou chamar a polícia”. O funcionário, assustadíssimo, se aproxima e pergunta “mas o que é que fiz?” “O senhor só trouxe cerveja normal. E eu adoro cerveja preta”, explicou Jamelão para risada de todos..
O orkut do Jamelão
Festejamos o aniversário de 93 anos de Jamelão no Consulado Mineiro, restaurante freqüentado por artistas, jornalistas e gente alternativa, na Praça Benedito Calixto, em São Paulo. Uma jovem em uma mesa próxima não parava de olhar em nossa direção. Jamelão deu o sinal de alerta. “Aquela mulher está olhando fixo para cá. Vai acontecer alguma coisa. Já vi este filme!" Ao final do jantar, quando saíamos da casa, não resisti. Fui até a mesa e perguntei se queria alguma coisa. Ela pediu para falar com Jamelão. Indaguei e ele deu o sinal de positivo. Quando chegou à mesa, ela disse: "Eu sou a Flávia". Ele ficou olhando, estático, sem falar nada. "Sou a sua amiga, Flávia", repetiu. Foi sincero: "Desculpe-me, mas não estou lhe reconhecendo". Ela explicou: "sou a Flávia, que fala com você toda a noite pelo orkut". "Pelo o que?", questionou. "Sua amiga do orkut", ela insistiu. "Tenho 93 anos, minha filha. Não tenho computador. E se tivesse, você acha que eu perderia minhas noites no orkut? Alguém está fazendo você de boba e mentindo que sou eu!". Entrou no meu carro, a gargalhadas. Ria tanto, mas tanto, que batia com os punhos no teto do carro. "Orkut! Orkut do Jamelão...essa foi demais"...Saí dirigindo pela noite de São Paulo, feliz por ter presenciado mais uma cena inesquecível ao lado deste grande homem.
Jamelão (última história – essa eu não vi, mas posso imaginar)
É cedo. Os primeiros raios de sol surgem e um homem velho, de chapéu e paletó, com elásticos nos dedos das mãos, falecido às 4h30, chega à porta do céu. “Quem é?”, indaga uma voz. Pouco disposto a falar, como tantas vezes durante os 95 anos em que esteve na Terra, ele dispara: “Mangueira teu cenário é uma beleza, que a natureza criou. O morro com seu barracão de zinco, quando amanhece, que esplendor”. A Voz exclama admirada: “Jamelão!”. E diz, mansa e poderosamente: “Pode entrar meu filho. Entra e senta um pouco para descansar da travessia”.
Ele olha, olha e, finalmente, responde, na lata: “Eu não sento. Eu me acomodo”. E por via das dúvidas ainda recusa o cumprimento com mão...
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