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sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Pré-Carnaval e a cidade reclusa

Por Érico Firmo

O que de mais importante o Pré-Carnaval propicia para Fortaleza talvez nem seja a alegria de quem brinca - embora seja essa sua razão de existir e aquilo que lhe confere vigor. Também não é o aspecto econômico o mais valioso. A relevância nessa área é crescente, de fato. Não só na microeconomia que movimenta. A presença de turistas cresce a cada sábado. Embora sem adequado trabalho específico dos órgãos de turismo, há gente de outros estados que programa viagens já de olho no mais longo período de festas da Capital. Quem está por aqui a passeio nessa época dificilmente deixa de conferir. Mal comparando – pois há abismo intransponível entre a tradição consolidada de uma e o histórico recente de outra – é como ir a Salvador em janeiro e não assistir à festa do Senhor do Bonfim. O potencial é muito maior do que se aproveita hoje. Ainda assim, o peso já é considerável. Mas não é o fundamental. Talvez o que de mais precioso o Pré-Carnaval represente para Fortaleza seja a reconstrução dos laços do povo com os locais públicos da cidade.

A CIDADE COMO LOCAL DE PASSAGEM
Ao longo das últimas décadas, os espaços de uso coletivo gradualmente se converteram em ponto de passagem. Transita-se por eles, apenas e tão-só. Claro que há exceções. Como regra, todavia, é no carro que hoje a classe média e a alta estabelecem a mais intensa relação cotidiana com Fortaleza. Lugares antes de convivência perderam tal característica. Restringem-se hoje a pontos de ligação. A calçada, que recebia cadeiras e era espaço dos encontros e brincadeiras das vizinhanças, hoje normalmente é mero local para trânsito de pedestres. Ficam vazias a maior parte do dia nas áreas nobres – onde andar pela rua é apenas esporte. Ao crescer, a cidade se tornou mais perigosa, hostil, fria e indiferente. Com isso, fechou-se nos espaços particulares. Praticamente todo o lazer é privado: no shopping, no restaurante, na boate, no cinema – que, aliás, ficou ainda mais recluso, ao sair da rua para dentro também dos shoppings. No máximo, a interação com o espaço externo, no lazer, costuma se dar nos bares que ocupam calçadas ao arrepio da lei. O assunto foi abordado na revista publicada pelo O POVO no aniversário de Fortaleza de dois anos atrás, em 13 de abril de 2010. Na ocasião, a dimensão do problema foi exposta pelo sociólogo Mateus Perdigão. “Mesmo com a praia, que é um espaço público, a gente só se relaciona de forma privada: não vai à praia, vai para uma barraca de praia”, apontou à época. Mateus é mestre em sociologia e, também músico do “Luxo da Aldeia” – provavelmente o mais original dos blocos que se apresentarão até fevereiro. Pois é justamente a subversão dessa antítese de cidade que o Pré traz de mais valioso para Fortaleza. O reencontro se dá, sobretudo, em espaços referenciais, como Praia de Iracema e Centro – mas não apenas. A cidade começou a se redescobrir coletiva no Pré-Carnaval. Isso não pode se perder.

VÍTIMA DO SUCESSO
Normalmente, as coisas acabam porque não dão certo. Em Fortaleza, são recorrentes exemplos daquilo que chega ao fim porque dá certo demais. No Pré-Carnaval, começa a ficar longo o cortejo fúnebre de blocos extintos, vejam só, pelo excesso de público. O mais emblemático caso talvez tenha sido o histórico “Quem é de bem fica”, nos anos 90. No começo da década passada, deu-se o mesmo na festa na rua Lauro Maia. O “Concentra, mas não sai” teve de deixar o Mercado dos Pinhões por não mais comportar a multidão. O amigo Magela Lima, em artigo aqui no O POVO, na segunda-feira, comparou a festa fortalezense ao Galo da Madrugada, de Recife (PE). O maior bloco de Carnaval do mundo sai numa cidade quase um milhão de habitantes menor que Fortaleza. Caso fosse aqui, não teria completado um terço de seus 34 anos. A mesma coisa teria acontecido se o Carnaval de Salvador ou do Rio de Janeiro fosse realizado na capital cearense. A festa crescer não é ruim: é ótimo. O transtorno é decorrência óbvia de qualquer grande evento. Lembra quando, há mais de dez anos, a cidade recebeu reunião do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)? Um monte de vias foram fechadas, aulas foram canceladas. Mas se julgou que valia à pena. E espera só para ver como ficará Fortaleza em dia de jogo da Copa do Mundo de 2014. A confusão causada é natural e óbvia. O que é necessário é se preparar para ela. A falta de segurança denunciada é criminosa. Os blocos estão certos em reclamar e ameaçar adotar atitudes extremas. A festa não precisa de mártires. As pessoas fazem o Pré com paixão, mas não estão dispostas a correr riscos desnecessários e evitáveis – no que estão cobertas de razão. E esse é apenas o mais grave problema. Os banheiros químicos, por exemplo, passam longe de atender à demanda, o que transforma a Praia de Iracema num grande e fétido banheiro a céu aberto. Com um pouquinho mais de organização, o evento poderá crescer muito mais, para virar referência nacional e, talvez, até fora do País. O poder público deu empurrão lá atrás, que tornou esse fenômeno realidade. Agora, precisa ir além. Jogar por terra esse potencial é impensável e inadmissível.

Também é necessário rever a gestão dos blocos. É natural que os organizadores fiquem apavorados com o gigantismo que as coisas tomam. Mas quem faz festa na rua deve estar preparado para isso. Caso contrário, melhor receber os amigos no quintal de casa. É evidente, por outro lado, que agremiações tímidas, a princípio, não estarão gerencialmente preparadas para esse crescimento. É preciso suporte – óbvio que àqueles que desejem. A maioria pretendia apenas reunir um pequeno grupo e, de repente, percebeu que o evento adquiriu proporções descomunais. O que significa muito mais trabalho e responsabilidade. Ninguém é forçado a arcar com isso. Nesse caso, o destino é o fim de tais blocos. Mas, aos que pretendem ir em frente e desbravar o potencial possível da festa, é fundamental reestruturar o aspecto gerencial. Também aí, o suporte do poder público é crucial.
  
http://www.opovo.com.br/app/colunas/politica/2012/01/27/noticiaspoliticacoluna,2774096/pre-carnaval-e-a-cidade-reclusa.shtml

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